sábado, 8 de fevereiro de 2014

BRINCADERIA COM SOMBRA

Mariano Dolci - Professor e Bonequeiro¹



O palhaço é um espelho no qual o homem vê a
si mesmo como uma imagem grotesca, disforme e
ridícula. É a sua própria sombra. E sempre o será.
É como se nos perguntássemos: Morreu a sombra?
A sombra morre?
Frederico Fellini

A força do hábito faz com que apenas notemos a presença das sombras, ao menos até quando não desejemos fugir do calor. São banais, porém não para todos: as crianças pequenas as descobrem precocemente, maravilhadas, e desde muito cedo intuem que as sombras são uma presença fascinante neste mundo, e que podem chegar a possuir um grande potencial para brincar. As observações feitas pelas educadoras das escolas infantis de 0 a 3 anos nos revelam que em um determinado momento de seu desenvolvimento todas as crianças se perguntam sobre as sombras, com as quais depois estabelecerão ricas interações. Ao longo de toda a infância, as sombras continuam sendo um ambíguo material de exploração, na qual parecem confluir o conhecimento e a fabulação, e também a experiência e o simbólico. No entanto, é fato que nos livros de pedagogia as sombras, como material de brincadeira, quase nunca aparecem ou o fazem de forma muito breve entre as experiências que se propõem com areia, água e outros materiais naturais (somente nos vem à memória uma breve e curiosa referência, de forma bastante isolada, sobre o potencial das sombras no Emílio de Rousseau).
Poderia ser interessante para as educadoras saber de que modo e através de que passos a criança chega a reconhecer-se em sua sombra e o que é que depois as leva a interagir com ela? No que se refere à imagem no espelho, sabemos que a evidente “solidariedade dinâmica” entre os próprios gestos e os da imagem no espelho provoca inúmeros feedbacks que revelariam o princípio da tomada de consciência de si mesmo.
Embora nas sombras as correspondências simbólicas se reduzam ao mero contorno a correspondência como aquela que se produz no espelho, e o fato de ter reconhecido anteriormente o reflexo especular provavelmente abra caminho ao reconhecimento, mais difícil, da sombra.
Mas, é este o processo que passam todas as crianças? E em que idade se desenvolve? Existem ou terão existido em nossa sociedade crianças que tenham chegado a reconhecer-se na sombra mesmo antes que no espelho? Poderia acontecer que as crianças reconheçam as sombras de alguns objetos, ou de outras pessoas, inclusive antes que a sua própria? Chegam ao reconhecimento da sombra através da sua própria, ou pela dos outros? Não saberíamos responder a tudo isso.
As educadoras das escolas infantis de 0 a 3 anos nos contam que o surgimento das interações com a sombra costuma ser precoce e muito mais comum do que poderíamos suspeitar. Pelo que nos dizem, deduzimos que a maioria das crianças chegaria, de uma forma ou de outra, a reconhecer-se em sua própria sombra entre o 15º e o 20º mês.
Alguns antropólogos consideram que a presença da sombra teve um importante papel, nas origens de nossa espécie, no desenvolvimento da consciência. A sombra teria sido a primeira objetivação do “eu” e teria conduzido a formação do conceito de “alma”. E se as crianças utilizam a sombra da mesma forma que
nossos ancestrais, como alimentos para seu próprio processo de auto-identificação? No início do século XX, Stanley Hall expressou a opinião de que as crianças condensam e sintetizam na brincadeira o progresso da nossa espécie. Todas essas considerações são sugestões, não há dúvida, porém que não devemos tomá-las automaticamente, ao pé da letra.
De qualquer forma, não deixamos de nos surpreender diante do fato de que, dado o evidente interesse espontâneo das crianças, a questão da gênese do reconhecimento da sombra não tenha suscitado muitos estudos. Sem dúvida, o leitor deve ter percebido que até este ponto do texto apareceram vários sinais de interrogação e modos condicionais. O fato é que o problema da sombra tem ocupado tanto a imaginação popular como a dos artistas, mas, pelo que parece não aos estudiosos da infância (na verdade Piaget, Wallon e outros se perguntaram pelas concepções das crianças com relação às sombras, mas não pelo processo de reconhecimento da criança na sua própria sombra).
Na década de 1980, quando perguntamos sobre isso ao psicólogo francês René Zazzo, grande especialista no tema dos reflexos especulares e dos “duplos”, ele (afirmou) que não havia estudos sobre a gênese da sombra. Mais de dez anos depois, em seu magnífico livro “Reflets de miroir et autres doubles”, (Paris, PUF,
1993), o autor confirmava: “Ao contrario, no que se refere à sombra todavia não existem soluções, pelo fato de que jamais essa questão foi colocada, nenhum psicólogo se interessou por ela...” (não haverá, por um acaso, entre os leitores, um psicólogo, ou aspirante a sê-lo, que queira explorar este terreno tão pouco ou nada investigado?).
Na falta de estudos psicológicos, retornamos às escolas infantis, cujas educadoras, após observar o extremo interesse das crianças pelas sombras, conceberam uma série de brincadeiras a respeito, acumulando observações e formando um saber empírico de grande interesse na prática cotidiana.
Quando a presença de uma sombra estimula a curiosidade de uma criança, com frequência sua primeira reação é a de tentar capturá-la, como faz com tudo aquilo que quer conhecer. Porém: surpresa!, A sombra sempre escapa, colocando em crise este modo de aproximação cuja eficácia parecia até agora tão adequada. O esforço de compreensão requerido já é importante desde o primeiro momento: se trata de dominar o paradoxo de algo que se vê, e que, portanto, evidentemente existe, mas que não se pode tocar, de algo que pode “ser” e “não ser” ao mesmo tempo. Saber aceitar este paradoxo é um privilegio da inteligência humana, e é o que permite logo acessar a metáfora e ao símbolo, quer dizer, ao conhecimento. Não é por acaso que o homem seja o único ser que percebe o duplo significado da imagem, o que constitui uma das primeiras abstrações. Também vincular um perfil a um corpo pode ser uma árdua tarefa. Sobre esta tensão entre a presença e a ausência surgirão interrogações, cairão certezas e se construirão novas hipóteses.
Além do interesse por sua própria identidade, a criança brinca com a sombra para (aprender a entender suas leis. Antes de tudo deve reconhecer-se, manter integra sua identidade nas sucessivas posturas, elementos parciais que assumem aspectos diferentes, formas mutáveis,em distintos ângulos.
Primeiro é preciso colocar a sombra a prova, constatar se realmente ela lhe pertence, se imita seus próprios gestos. A sombra faz parte de uma relação. Goza do trabalho da própria imaginação, além das aventuras das caretas e dos gestos realizados, às vezes, para desafiar a sombra. Quando se afasta da sombra correndo, brinca de deixá-la, de esconder-se, de reviver pela experiência o medo de não existir materialmente. Uma identidade familiar convertida em “alienada” (que traz à memória o “deslocamento” sistemático de Max Ernst para penetrar a realidade).
Em seu livro Il bambino e i suoi doppi –(Turín, Bolatti Boringhieri, 1993)– Tilde Giani Gallino escreve: “a descoberta de que as demais crianças também têm uma sombra pessoal representa um posterior desafio (ainda que por outro lado pode determinar um conflito sociocognitivo que anuncia um desenvolvimento) para egocentrismo e o narcisismo próprios.”
A criança brinca com sua própria identidade e com sua mente em movimento, mais do que com a as regras das projeções. Naturalmente, estas duas atividades não podem diferenciar-se nitidamente, embora convém não esquecer, que sempre ambas se fazem presentes, a fim de não subestimar a tensão cognitiva que a criança coloca em todas as suas brincadeiras.
Uma intervenção ativa e laboriosa é requerida da imaginação para completar “o que falta” dentro da sombra; mas essa intervenção mantém sempre uma relação direta com a forma e o comportamento da própria sombra. Não há lugar para a fantasia superficial enquanto a imaginação não se entrega ativamente a uma operação.
Depois de brincar ao ar livre, a introdução de uma tela na sala cria um novo contexto e desmonta algumas certezas. Enquanto brinca, a criança descobre e logo aprende a familiariza-se e a dominar as leis das projeções, sem deixar por isso de continuar brincando com elas, de formular hipóteses.
Não deixa de fazer um uso fantástico das aquisições racionais que acumula. Assim, faz parte de seus conhecimentos o fato de saber que, quando ele se desloca diante da fonte luminosa, sua sombra na parede (muda de dimensão, mas isto não lhes impede, em absoluto, de acreditar que as sombras são dotadas de autonomia e de vontade próprias. Tais ambigüidades caracterizam e alimentam os processos criativos tanto nos poetas e cientistas como nas crianças e nas pessoas normais e comuns. Se abraça a fantasia para estabelecer uma relação ativa com o real e com o que parece ser-lo: não existe criação autêntica sem certa dose de ambiguidade.
Será tarefa do adulto, conforme o caso, averiguar se naquele momento concreto a criança está mais interessada em receber informação sobre as sombras, as projeções, as transparências, etc., ou se prefere brincar com as sombras para extrair, a sua maneira, a informação que estas lhe proporcionam. Neste sentido, um educador nos assinalava: “As vezes vi brincar espontaneamente com as sombras, crianças de três anos), na hora de irem para cama. Nós, entretanto, os orientamos em outras direções, como por exemplo, fazer-lhes escrever seus nomes, etc.” A sombra, ao não ser “presença”, mas sim “ausência”, pode nos oferecer potencialmente diversas e extraordinárias oportunidades educativas que consideramos de grande valor; mas há que considerar que o interesse universal pela sombra, se não encontra respostas adequadas no mundo adulto, acaba em geral confinado a âmbitos totalmente episódicos e privados, tal como ocorre no caso dos maiores.
Faz alta, portanto, alguém que o celebre, que aplauda; caso contrário, as sombras se dissolvem e muito rapidamente são esquecidas. A criança cuja atenção não se tenha detido na sombra, tampouco observará depois a sombra do portão, do vôo das pombas ou dos galhos agitados pelo vento. (A) nós (compete, pois), saber aproveitar a oportunidade que nos oferecem as sombras, para alargar suas potencialidades em diversas e articuladas direções, as quais, se sabemos observar bem, nos sugerirão as próprias crianças através de suas refinadas estratégias de aproximação a tão evanescente presença. Vale a pena começar a brincar com as crianças de todas as idades. Como manifestava uma educadora convencida: “as sombras entraram em nossa escola, e não sairão jamais”.

¹ - Depois de ter se aposentado da Prefeitura de Reggio Emilia, onde dirigia uma oficina sobre as potencialidades pedagógicas dos fantoches (máscaras, sombras, marionetes e fantasias), segue seu trabalho em diversos contextos educativos e sociais (hospitais psiquiátricos, cárceres, etc.) em toda a Itália.

Bibliografia
Dolci M. y otros: Tutto ha un’ombra meno le formiche, Reggio Children, Reggio Emilia.
Dolci M., jo i les ombres, A. M. Rosa Sensat, Barcelona, 2003.
Giani Gallino T., Il bambino e i suoi doppi, Bollati Boringhieri, Torino, 1993.
Piaget J.: La formation du symbole chez l’enfant , Delachaux et Niestlé, Neuchâtel, 1945.
Piaget J.: , Presses Universitaires de France, París, 1947.
Zazzo R.: «Miroirs, images, espaces» , en La reconnaissance de son image chez l’enfant et l’animal» (bajo la direction de Pierre Mounoud y Annie Vinter), Delachaux et Niestlé, París, 1981.
Zazzo R., Reflets de miroir et autres doubles, Presses Universitaires de France, París, 1993. 

Texto original publicado na Revista Infância Latinoamerica em Português, nº 01 de 2011.
Tradução do texto original para a revista Infância latinoamericana - nº 01/2011 por Paulo Sergio Fochi.
Disponível em: http://www2.rosasensat.org/revistes/infancia-latinoamericana-em-portugues

Um vídeo sobre a surpresa do conhecimento